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A inteligência do lugar – por uma transição ecológica enraizada

Texto originalmente publicado no jornal Público, a 24.Ago.2025

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Num tempo em que a abstração global ameaça dissolver os vínculos fundamentais entre as pessoas, os ecossistemas e a memória coletiva, o “local” emerge como o lugar onde tudo começa, e onde tudo se pode regenerar. Mais do que uma unidade espacial ou uma categoria geográfica, o local é o espaço vivido, percebido, construído e sentido com todos os sentidos. É o solo que nos alimenta, a água que nos sustenta, o ar que respiramos. Os recursos essenciais à vida são locais, e por isso mesmo, a sustentabilidade só pode ser enraizada.

A aceleração do modo de vida global, assente em fluxos contínuos e lineares de matérias, mercadorias, capitais e informações, promoveu uma perceção do mundo onde tudo é intercambiável, rápido, infinito e barato. Porém, esta promessa de ubiquidade tem um custo ecológico, cultural e emocional insustentável. A globalização apagou os sotaques da terra, os sabores do território, os gestos do quotidiano. Mas o murmúrio do lugar resiste. Quando voltamos a caminhar devagar, a meter as mãos na terra ou a escutar o silêncio de uma tarde quente, o território volta a falar. Sussurra, ensina, pede cuidado.

A globalização apagou os sotaques da terra, os sabores do território, os gestos do quotidiano. Mas o murmúrio do lugar resiste
A conceção contemporânea do lugar pode beneficiar de duas tradições epistemológicas complementares. A primeira, herdada do conceito grego topos, remete para a localização física: coordenadas, altitude, situação relativa. É o lugar como ponto mensurável, como unidade espacial elementar. A segunda, mais profunda, vem da chôra, outro termo grego, que evoca a relação entre o território e os corpos, as experiências, as emoções e os significados que nele se inscrevem. Este olhar relacional foi desenvolvido pela geografia humanística, nomeadamente por Yi-Fu Tuan, para quem o lugar é espaço tornado íntimo, vivido e incorporado.

O filósofo Edward Casey aprofunda esta perspetiva ao propor a ideia de “inteligência do lugar”, entendida como a capacidade que os lugares têm de pensar connosco, de formar a nossa perceção, a memória e o comportamento. Segundo Casey, o lugar é uma entidade viva e relacional que se exprime em três dimensões: memória incorporada (os lugares conservam histórias, afetos, práticas), corporeidade (conhecemos o mundo com o corpo, através dos cinco sentidos) e relação (o lugar não é um palco, mas um sujeito que nos interpela). Esta dimensão relacional não é um luxo poético, é uma infraestrutura invisível da vida. Destruir um lugar é, também, destruir uma biblioteca de saberes tácitos, acumulados durante séculos. A destruição dos ecossistemas representa, assim, não apenas uma perda de biodiversidade, mas também de saber. Os lugares sabem mais do que nós sabemos deles. A globalização, ao uniformizar o mundo, promove uma desinteligência do lugar: tudo se torna genérico, sem espessura nem história.

A globalização, ao uniformizar o mundo, promove uma desinteligência do lugar: tudo se torna genérico, sem espessura nem história
O modo de vida global, que separa o consumo da origem dos recursos, rompe esta inteligência silenciosa. Uma maçã que percorre oito mil quilómetros até à nossa mesa carrega uma pegada invisível que não está no preço final. O lugar de origem perde significado, o lugar de destino perde consciência. Se ampliarmos o olhar, percebemos que este fenómeno atinge todas as escalas: das sementes híbridas dependentes de cadeias logísticas globais aos dispositivos eletrónicos cuja extração mineral ocorre territórios distantes sem sabermos em que condições. Esta desconexão afasta e alivia a responsabilidade ecológica, porque não sentimos as consequências materiais das nossas escolhas.

Neste contexto, a transição ecológica ganha outra densidade quando pensada a partir da vida local. Não se trata de um retorno ao passado ou de nostalgia ruralista, mas de uma metamorfose civilizacional. A regeneração exige a reconexão com o território, com os ciclos naturais e com a comunidade. Exige uma revalorização do que é situado, sensível e simbólico. A vida local não é um resíduo pré-moderno, mas um potencial de futuro. A sustentabilidade deixa de ser um conjunto de indicadores abstratos para se tornar um modo de vida: viver com o lugar, no lugar e a partir do lugar. Esta mudança implica também repensar a escala das decisões políticas e económicas. Governar a partir de uma lógica territorial significa reconhecer que cada ecossistema tem limites biofísicos próprios e que as soluções universais raramente respeitam essas singularidades.

O exemplo recente da aldeia da Ermida, na serra Amarela, no concelho de Ponte da Barca, confirma esta tese com clareza comovente. No final de julho de 2025, quando o fogo cercou a aldeia e os meios institucionais não chegaram a tempo, foram os habitantes que salvaram o território. Organizados de forma espontânea, com saber partilhado e vínculos comunitários, defenderam casas, rebanhos, caminhos e vidas. Este episódio não é uma exceção heroica, mas a expressão de uma inteligência coletiva enraizada no lugar. A proteção da paisagem começa com a presença humana atenta. Onde há comunidade viva, o fogo pode ser enfrentado com sabedoria.

O caso da Ermida é também um espelho de outros territórios resilientes, vilas que gerem a sua própria água, aldeias que mantêm hortas comunitárias, comunidades costeiras que regulam a pesca de forma sustentável. Todos estes exemplos têm um denominador comum: a governança enraizada. Não há plano de resiliência possível sem pessoas que conheçam cada fonte, cada caminho, cada vento que sopra.

A ciência confirma que esta proximidade física e cognitiva com o território aumenta a resiliência. Estudos da FAO e da IPBES (Plataforma Intergovernamental Científico-Política sobre Biodiversidade e Serviços dos Ecossistemas – Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services) mostram que comunidades que mantêm práticas agrícolas diversificadas e adaptadas localmente resistem melhor a crises climáticas do que sistemas agrícolas uniformizados e dependentes de importações.

Esta realidade leva-nos a considerar o lugar como um verdadeiro sujeito ecológico e cultural. O genius loci, expressão recuperada pelos arquitetos e paisagistas, corresponde à alma do lugar: um conjunto de características naturais e culturais, de energia e forma, que condiciona e inspira a vida ali existente. Pensar a transição ecológica sem integrar esta dimensão sensível é falhar o essencial. Como nos lembra o pensamento taoista de Zhuangzi, tudo o que vive está inserido num fluxo de forças naturais, e a harmonia advém da escuta desse ritmo. A metáfora da “árvore inútil”, que sobrevive precisamente por não servir a uma lógica de utilidade imediata, mostra como a sombra, o silêncio e a lentidão são elementos essenciais da vida, mesmo quando não têm preço.

Na economia globalizada, a inutilidade é descartada; na ecologia do lugar, a inutilidade é muitas vezes a garantia de sobrevivência. O charco que “não serve para nada” é o berçário de anfíbios, o corredor de aves migratórias, a reserva de água num verão seco. A vida local exige essa redescoberta do valor do “inútil”, do que resiste à lógica do mercado e alimenta o corpo e a alma. A sombra de uma figueira, o rumor de uma ribeira, o sabor de uma sopa de beldroegas, o cheiro da terra molhada: são expressões de uma inteligência do lugar que não pode ser digitalizada nem substituída por algoritmos. É um saber antigo, lento e profundo, que se transmite por vivência, não por abstração. E este saber é frágil: basta uma geração desligada da terra para que se percam gestos milenares. A ciência confirma-o, estudos como o de Miles Richardson (2025) demonstram que a ligação humano–natureza diminuiu de forma contínua desde 1800, com quebras mais acentuadas nas últimas décadas, e que a recuperação exige décadas de práticas locais consistentes. Perder um gesto, como a forma de podar uma oliveira ou de ler os sinais de chuva nas nuvens, é perder um código de adaptação transmitido por séculos. São estes saberes tácitos que estruturam a autonomia alimentar e hídrica das comunidades.

Na economia globalizada, a inutilidade é descartada; na ecologia do lugar, a inutilidade é muitas vezes a garantia de sobrevivência
Neste sentido, a transição ecológica é também uma transição ontológica: uma mudança no modo de ser e estar no mundo. Habitar não é apenas ocupar um espaço, mas viver em relação com ele, fazer parte do seu metabolismo. A tríade recursos, abrigo e segurança, comum a todas as formas de vida, ganha expressão plena nesta escala local. Só aqui os cinco sentidos se ativam plenamente. A tecnologia pode simular muito, mas não pode substituir a experiência de estar no lugar. Podemos saborear sushi em Lisboa, mas só em Tóquio se sente o ruído, o cheiro e a luz daquela cidade. Só o lugar é real.

Portugal, pela sua história geológica, oferece uma diversidade geográfica e paisagista ímpar, constituindo-se um laboratório natural para esta reconciliação entre cultura e natureza. A variabilidade climática, a exposição atlântica, a geodiversidade e a riqueza cultural tornam o território português uma “manta de retalhos” onde cada lugar tem uma alma própria. Explicar o Alentejo a quem nunca saiu do Minho é uma tarefa impossível sem presença, sem escuta, sem corpo. Por isso mesmo, a vida local é também uma pedagogia da atenção. O território ensina. Os lugares educam. Nesta pedagogia, não há manuais universais, cada território escreve o seu. As regras de rega no Barroso não são as mesmas da lezíria ribatejana; a poda das vinhas no Douro segue um calendário distinto do das do Alentejo. A sabedoria é localizada, e é precisamente essa diversidade que fortalece o todo. Preservar esta diversidade de saberes exige políticas públicas que não apenas a reconheçam, mas que a apoiem ativamente, desde a proteção de mercados locais à valorização da gastronomia regional, passando pela gestão comunitária da água.

A proposta que aqui se apresenta é clara: a verdadeira sustentabilidade não será alcançada apenas por grandes soluções tecnológicas, mas pela escuta atenta da alma do lugar. A regeneração começa no território vivido, com as mãos na terra, os olhos no horizonte e os pés bem assentes no chão. O que está em jogo é a maneira como habitamos o mundo. Como disse Gandhi, “vivei com simplicidade para que os outros possam simplesmente viver”. Zhuangzi dá-nos o fundamento milenar dessa simplicidade regeneradora. Edward Casey oferece-nos as ferramentas para pensar o lugar como fonte de saber. Yi-Fu Tuan recorda-nos que os lugares não são apenas geográficos, mas existenciais. E a aldeia da Ermida mostra-nos, com clareza dramática, que o futuro depende da inteligência relacional dos lugares.

O local é incontornável e sereno, porque não admite equívoco; na verdade, só há futuro onde houver lugar. O desafio é sermos contemporâneos do nosso lugar, não apenas habitantes passageiros. É aí que começa, e acaba, a verdadeira transição ecológica.

Qual é a alternativa?

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