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Não Te Esqueças De Viver

Transcrição de excertos da última conferência do ciclo "Não te esqueças de viver", organizado pela Culturgest.

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Video disponível em : https://vimeo.com/157437536

1- (00h6’17’’) “Sobretudo a partir de Kant percebe-se muito bem que a Natureza é, para o homem do séc. XVIII, um conceito de dupla face. Por um lado é um objecto do nosso conhecimento e ao mesmo tempo um conceito do nosso entendimento, e por isso sobre o nosso domínio mas por outro lado é um excesso enquanto nascimento. A palavra fusis, equivalente à palavra latina natura, que dizer na raiz- qual coisa que brota. Natura vem do verbo nascore – que tem a ver com aquilo que brota, aquilo que nasce, que está a nascer, o que nasceu. O melhor acesso para a compreensão da natureza vem deste jogo etimológico, que nem sempre é bem-vindo, porque às vezes é idolatrado. E não convém idolatrar nada. Para despertar para a vida é preciso que os ídolos sejam destruídos. Não é preciso estudar filosofia para destruir os ídolos. Na verdade, na maior parte dos casos, são os ídolos que nos impedem de nos lembrarmos da vida. A Natureza como um conceito ou a Natureza como nascimento, é difícil de circunscrever o nascimento como ou aquilo que está a nascer como conceito . Não há nenhum conceito que aprisione este acto, ou este renascimento em acto constante. Estas duas maneiras de conceber a Natureza entraram em litígio na época de Kant (1724-1804) e de Goethe (1749-1832), eles ainda são contemporâneos. Mas, a partir de certa altura, uma das visões tomou a dianteira, claramente . E a Natureza a que nós nos referimos quase sempre, é a natureza como conceito - um ser á nossa mercê, um ser relativamente ao qual nós podemos fazer as nossas previsões, tomar as nossas medidas, na crença de que cada vez mais estará à nossa mercê. Claro que a natureza se encarrega de demonstrar o mal fundado desta compreensão, mas isso não evita que essa compreensão se mantenha quase totalmente na integra e seja tão nefasta”.

2 - (00h20’22’’) Para Goethe a Natureza é uma força que devora a força. Mais perto da velhice descobre o caracter humorístico da natureza, além das outras dimensões que ele descobre – a respiração constante ( inspirar, expirar, a sístole, a diástole), o ritmo como uma vida própria da natureza, um ritmo criativo de formas e de oposições que não têm superação. Não há síntese. Há é demonstrações de várias faces das oposições, mas não há síntese. A Natureza é humorística e é uma desmedida força de devoração e de renascimento. Mas ele também imaginou que se podia fazer frente à Natureza. A esta Natureza, não como objecto do nosso entendimento, porque aí nós estamos já com a convicção que a domamos, mas fazer frente ao monstruoso, ao imenso. Nós podemos miniaturizar. Inventar miniaturas, a que ele chama obras de arte. A obra de arte é espécie de miniatura da força que devora a força, do humor, da imensidão, do carácter monstruoso da natureza. A arte é para Goethe uma espécie de despertar para, durante algum tempo, fazer frente àquela de que nós fazemos parte, é muito paradoxal. A arte é muito paradoxal. Todos estes exercícios em Goethe têm uma fonte artística e poética, essa é a diferença em relação à Filosofia. Quando lemos as partes citadas de Cícero, Crisipo, Lucrécio, Epicteto, percebemos que a comunidade filosófica ainda existia no tempo deles. Havia uma vida em comum, hábitos. Eu considero que os exercícios espirituais são hábitos. Hadott acha que eles são actos da vontade, do entendimento, da imaginação, que constituem a nossa vida como matéria de formação e metamorfose e ao mesmo tempo mundo (ele não fala de natureza) também como matéria de formação e metamorfose, numa ligação que nunca pode ser prevista, nunca pode ser regulamentada. Eu considero que é um hábito. Hábito que é alimentado, tem origem e é alimentado no esforço de despertar para a vida. Isto é, no fundo para a descoberta que a vida não é um facto mas um bem. É movido pela expectativa da felicidade. A expectativa, lido à minha maneira, é o esforço que está no fundo do coração do despertar para a vida. Hadott dedica este livro ao neto. A infância está sempre à frente da velhice. (…) Aqui ele reúne quatro textos sobre Goethe, sem os alterar. Estão intactos, o que é muito precioso para o leitor pois tem acesso às remissões. (…)

3- (00h51’33’’) Como é que nós podemos ligar-nos ao nosso presente? Em Goethe há três modos. Um deles é a atenção às exigências do dia. Este dia não vai repetir-se. Então o seu carácter único deve ser respeitado como uma divida. Pagar a dívida ao dia. E a atenção é, em muitos filósofos, a fonte da compreensão e evita muito erro. A outra é a relação com o presente ser sentida como único, por exemplo o momento amoroso. Depois há a compreensão do presente como o forno, o cadinho da nossa criatividade. É AGORA que eu tenho de agir. É AGORA que eu tenho de imaginar. Não diminuir a força que nós temos, respeitar a força que nós temos em relação ao momento. Experimentar num gesto que se faz a alguém, num canto que se canta, numa palavra que se diz a alguém, experimentar essa novidade que cada dia traz. Esse momento fértil, pleno para Goethe, é a condição de qualquer obra arte, qualquer gesto humano. E para fazermos isso é preciso doarmo-nos ao presente, é preciso darmos ao presente qualquer coisa. Que é aquilo que vai dar origem ao gesto, à forma artística, é o momento que Nietzsche diz da gravidez . São as dores de parto (…) A embriaguez ( o elemento dionisíaco) é vencida por uma força maior, que é a força da gravidez , a imagem da concepção feminina e do parto. É esse trabalho que está no esforço de despertar para o dia e está no esforço da produção de qualquer obra de arte que para Goethe consiste em respeitar o seu dia trazendo um momento à vista ou ao ouvido através do poema, da pintura, da escultura, … (…)
Este anseio “pela morte nas chamas” é uma imagem da atracção da borboleta pelo fogo, pela luz da vela. Era uma experiência corrente nesse tempo. Essa imagem aparece muitas vezes assimilada à criatividade. (…) Mas não é uma condenação este abandono às chamas, é um renascimento. É isso que aparece na estrofe final (Goethe). “E enquanto não entenderes isto| que atiraste para o fogo | morre e torna-te devém| Então serás apenas um convidado turvo na escura terra”. (…)


4 - (00h 56’32’’) Na Divina Comédia, Dante é incitado a atravessar a parede de fogo que separa o Purgatório do Paraíso. E ele não quer, pois lembrava-se de ver muitas condenações pelo fogo e dos corpos a contorcerem-se pelo sofrimento. (…) Mas acaba por o fazer e sente uma tranquilidade enorme. Como se estivesse a ser lavado numa temperatura perfeita, e como se tudo nele estivesse a renascer. Como se estivesse a fazer uma travessia de catarse, sem que a palavra culpa apareça de forma muito nítida. (…) Essa catarse que é o fogo. É o fogo do esforço, o demorar que a obra leva. Este poema faz trazer para a compreensão do exercício espiritual da relação com o presente, do conhecimento do presente, qualquer coisa de muito profundo que tem a ver com a criatividade. E tem a ver com a compreensão de que a criatividade humana é um prolongamento do nascimento que é a natureza e ao mesmo tempo o fazer frente ao nascimento que é a natureza. Esse fazer frente é a única maneira de poder voltar a fazer parte da natureza. Para Goethe qualquer obra de arte autêntica volta para a natureza, esta natureza como criatividade, como nascimento. O retorno à natureza de qualquer obra de arte é o retorno de fazer frente ao nascimento prévio. Há uma outra expressão maravilhosa também nesta obra – “Alegria da existência ou do existir é uma coisa grande| maior é a alegria no existir”. (…) Nós alegramo-nos por que existimos, isso é grande mas maior é alegrarmo-nos por fazer parte da existência, por partilhar a existência.
(01h00'00'') Nietzsche era um leitor atento de (Ralph Waldo ) Emerson que escreveu “A confiança em si”. Ele parece Alain a falar, diz que o nosso começo é partilhar. Quando começamos a estar vivos estamos a partilhar e depois quando continuamos a viver, aquilo que nós partilhámos como fazendo parte de, aparece-nos como objectos , como aparências da natureza ou do mundo. Todo o nosso esforço está em voltar a partilhar, em despertar para a vida esta alegria, não só de existir como de fazer parte da existência. (…)

5 - (01h03’13’’) O exercício espiritual não é um dado, é um esforço. É um primeiro esforço de despertar, não é o único. O primeiro esforço vai ser esquecido, atolado, afogado nas exigências do dia-a-dia, que não são as exigências do dia. As exigências do dia-a-dia estão ligados a todos os sistemas finalísticos que permitem a nossa sobrevivência, todos, desde os mais rasteiros aos que nós pensamos que são mais sublimes. Todos. E não podemos dispensá-los porque nós temos que viver também como um facto. Mas a vida autêntica é aquela que transforma um facto num bem. Mas estamos sempre a ser arrastados pelas exigências dos lugares comuns, do dia-a-dia, da vida comum, atemo-nos demasiado à nossas crenças, ao que aprendemos por ouvir dizer. A dor de ouvir por exemplo ( que Byron falava e que a Agustina cita referindo Byron) que é a nossa experiência da dor hoje em dia, através dos meios de comunicação, que permitem uma fácil empatia e um imediato esquecimento. E o dia-a-dia é muito envenenado por essa relação doentia, com pessoas que não conhecemos e que nunca conheceremos e cujas dores não podemos absorver. Algumas pessoas transformam essa dor de ouvido em acto real mas as outras estão a envenenar a vida com inquietações sem fim, sem resolução.

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